terça-feira, novembro 15, 2005

A causa do sofrimento humano

O ser humano é o mais miserável dos seres. Estamos presos a meio caminho entre a impotência e o êxtase.
Uma hipotética criatura celestial, chamemos-lhe um anjo, teria ilimitadas capacidades, físicos e espirituais. Poderia viajar onde quisesse e fazer o que bem entendesse, deambulando por todas as realidades do universo.

Por outro lado, os animais irracionais são limitados quer em espírito, que se resume a uma prisão de um comportamento puramente motivado pelo instinto mecânico, não podendo viver noutra realidade senão na realidade presente, quer também limitados em capacidades físicas, dado estarem presos a um corpo, com limitações específicas, como a necessidade de ingerir oxigénio e nutrientes com grande regularidade.

Aos seres humanos, no entanto, foi concedida uma dádiva de valor altamente dubitável: enquanto fisicamente estamos tão ou mais limitados quanto os outros animais, o nosso espírito é verdadeiramente ilimitado, capaz de transcender todas as barreiras do instinto, capaz de sonhar com milhares de possibilidades, milhares de universos paralelos ao seu, capaz, enfim, de escapar da realidade presente, do mero plano da sobrevivência. È por isto que somos miseráveis.

Um anjo, tendo ilimitadas possibilidades, não se sente, naturalmente, preso. Um animal irracional, sendo limitado física e espiritualmente, paradoxalmente, também não se pode sentir preso, porque o seu espírito não pode ver além da prisão do seu corpo, da sua realidade pessoal. Não pode conceber existência que não seja a sua.

É o facto de que, nos seres humanos, a vastidão do mundo espiritual não corresponder às possibilidades reais do corpo físico, de haver esta desigualdade, que nos faz poder sentir tudo desde a alegria mais sublime ao desespero mais profundo. Nem um anjo nem um animal seriam capazes de sentir isso. Um ser humano vive sempre uma agonizante disjunção entre espírito e realidade. Uma criança vive num mundo em que ainda não percebeu bem o quanto o seu corpo a limita, dado ter uma imaginação tão potente que parece conseguir substanciar o imaginado no real, e, ao conseguir acreditar nas suas fantasias, estas tornam-se de certa maneira reais, mas ao crescer vai-se gradualmente dando conta da diferença entre sonhar e viver na realidade.

A única forma de lidarmos com as responsabilidades da realidade é embrutecendo-nos, deixarmos de exercitar o nosso espírito, para nos podermos dedicar aos problemas que estão a ser tratados no momento presente. Mas a rotina do real é de tal forma atroz ao nosso espírito que continuamente necessitamos de encontrar formas de nos distrairmos, de pensar noutras coisas. Na realidade, a realidade presente agride-nos e/ou enfada-nos em tal ordem que o que se verifica é que não há ninguém que suporte viver nela durante mais que uns segundos ou minutos de cada vez.

Ninguém consegue simplesmente observar a realidade sem rapidamente se perder em devaneios e fantasias sobre o passado ou o futuro, ou outras realidades que não a presente. A mente não consegue estar em repouso. A televisão, o cinema, a música, as artes em geral, são-nos agradáveis porque nos permitem escapar para uma realidade diferente, sentir algo novo, passar pelas vivências de outras pessoas. O apelo das drogas que oferecem formas de realidade distorcidas, das religiões que prometem redenção post-mortem (porque todas as religiões sabem que detêm poder pelo facto de a humanidade se sentir desconfortável com a sua condição, e à falta de saídas no plano real, oferecem saídas num plano imaginário), das ideologias que prometem sociedades ideais num longínquo futuro (porque logo se admite que o presente não é ideal e que num futuro próximo é impossível alcançar a sociedade prometida, logo se vai adiando a utopia para cada vez mais no futuro, até esta ser completamente oca), e até a busca de um amor, inserem-se também claramente na mesma necessidade de escapismo inerente ao ser humano.

O prazer do amor é particularmente subtil, pois que no seu melhor, é puro sentimento, puro agir, pura acção e reacção, puro pensamento nulo, ou seja precisamente viver no momento presente, carpe diem, mas com uma espécie de regressão a uma condição instintiva, quase animal, ou melhor dizendo, quase infantil, uma existência onírica, ao mesmo tempo próxima e distanciada do real. No seu pior, é um constante adiar de responsabilidades, é uma projecção no tempo futuro de uma situação ideal irrealizável e que apenas existe na nossa cabeça, que imaginamos como solução para os problemas que enfrentamos na realidade presente.


E quando a ilusão da paixão se esmorece, o embate com a realidade é particularmente brutal. Para quê amar, então, se depois se cai inevitavelmente no esgoto da realidade ?A vida é iniquidade, desequilíbrio, movimento, instabilidade. Há e haverá sempre vencedores e vencidos, ricos e pobres, felizes e infelizes. Não que essas posições sejam sempre ocupadas pelas mesmas pessoas, antes todos os seres humanos, todos os seres vivos vão-se alternando nestas posições. Todas as tentativas de instaurar um sistema verdadeiramente harmonioso, verdadeiramente igualitário, falharam, e falharão sempre, por serem sistemas artificiais e contrários ao espírito humano, de competição com os seus semelhantes, ao espírito da própria vida.

É o facto das características da vida, de mutação e de transitoriedade permanentes, chocarem com o nosso espírito ilimitado, que causa a insatisfação geral da espécie humana. Queremos sempre atingir o eterno, o permanente, a estabilidade de uma vida perfeitamente planeada, mas chocamos com a transitoriedade, com o contínuo devir da realidade. Os budistas ensinam, como forma de escapar ao sofrimento causado por este embate com a mutabilidade da realidade, que não nos devemos apegar às coisas, que devemos aceitar a transitoriedade, aceitar a perda permanente.

Uma saída lógica, mas, pelo menos para mim, impossível. De resto, talvez até para toda a humanidade tal seja impossível, visto que não vejo como se pode desapegar das coisas, das pessoas, e no entanto continuar a amá-las, continuar a apreciá-las. Desapegarmo-nos do mundo é entrarmos em depressão crónica.

Por tudo isto, renego tudo. Não me interessa o meu futuro e não me interessam as minhas posses, presentes ou futuras, não me interessa nada do que é transitório. E também não posso alcançar, devido à natureza de existir como ser limitado, algo de eterno. Sei que me sentirei sempre assim, tal como me senti sempre assim desde o fim da minha infância. As minhas conclusões são lógicas e derivam da minha experiência da realidade

3 Comentários:

Às terça-feira, novembro 15, 2005 , Anonymous Anónimo disse...

Se não nos preocupamos agora com o nosso futuro, no futuro vamos sentir-nos infelizes porque não fizemos nada para nos realizarmos (como diz o ditado: mocidade ociosa velhice vergonhosa). Mas se nos preocupamos com o futuro sentimos que não aproveitamos o presente para viver.
Eu acho que devíamos viver um dia de cada vez. Mas...

Sem dúvida o mundo dos adultos é muito complicado.

 
Às quarta-feira, novembro 16, 2005 , Anonymous Anónimo disse...

O que os europeus precisam é de samba.

Zé Carioca

 
Às quarta-feira, novembro 16, 2005 , Anonymous Anónimo disse...

por tudo ser transitório é que e porreiro. senao nao teriamos recordaçoes de nada, ou tinhamos recordaçoes da nossa rotina, e a rotina é uma m...so tenho de alegrar com o que é passageiro

 

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