O último Homem

Quando se é morto-vivo quer-se morrer. Ser só morto.
Às vezes fumava erva no jardim perto do rio. Gostava de ficar a ver as pessoas que chegavam aos últimos degraus das escadas que davam para o jardim, saindo das entranhas da terra como mortos-vivos. Primeiro a cabeça, depois o tronco e por fim os pés. Depois iam para os bancos com o mesmo instinto dos zombies, sem saberem muito bem porquê, mas porque sentiam que o acto era necessário para a sua alimentação diária. Casa-jardim-casa, jardim-casa-jardim.
Eu era o último Homem, aquele que tem que evitar a contaminação. Alguém arrumou as nuvens no céu como se fossem algodão doce. Maria está feliz e pensa o mesmo, e gostaria de conseguir mordiscá-lo. Desde pequeno que não sinto os farrapos de algodão doce sobreviventes no canto da boca e tenho saudades, embora já não tenha pai, lembra-me agora, para os limpar como quando era pequeno.
Maria fica triste e pensa que as nuvens são apenas nuvens, e que dentro de pouco tempo pode chover. O autocarro das sete está a chegar. Centenas de mortos-vivos vão sair, centenas de mortos-vivos vão entrar. Eu também, já que alguém me mordeu numa noite qualquer da minha vida, provavelmente durante o sono. Contaminou-me. Maria está sentada no mesmo banco em que eu fumava erva na adolescência, virada para o túmulo onde as escadas desembocam. Sorrio-lhe e digo-lhe adeus. Ela não responde mas desejo-lhe boa sorte em silêncio. Ela não sabe, mas hoje salvou-me a morte. Chove.

dedicado a ti