quinta-feira, outubro 27, 2005

carência dentro de segundos

Uma mulher magra caminha em passos curtos e apressados. Tanta energia para andar tão lentamente, penso. É magra e acredita que é bonita, pelo menos acabou de passar pelo manequim duma montra tão magro quanto ela. Uma manequim, aliás, já que, apesar de não ter cabeça, tinha seios e vestia roupa de mulher. Ninguém faz manequins feios, pensa. Daqui a alguns segundos sentar-se-á no banco da sala de espera dum consultório psiquiátrico. Parece feliz mas sabe que vai chorar quando começar a falar com o médico.
Rui decidiu esta manhã que não gosta de pessoas. Já empurrou um velho que queria entrar no autocarro antes dele sair, provocando uma pequena série de encontrões num dos cais da estação. Já não há respeito, disse o velho, e Rui sorriu antes de acender um cigarro. Ao sair do posto, onde terminou o seu turno nocturno, pediram-lhe para ficar a trabalhar mais tempo para colmatar a falta dum colega do turno seguinte, e Rui sorriu antes de abanar a cabeça em sinal de negação. Daqui a alguns segundos sentar-se-á na casa de banho do bar da estação de serviço, onde toma café todas as manhãs, às vezes quando sai do trabalho, outras quando entra. Parece feliz mas sabe que, quando estiver sentado na retrete, vai deitar a cabeça no ninho dos braços repousando sobre a nudez das pernas, e talvez chorar.
Um homem limpa as lágrimas à sua imagem no espelho do quarto onde dormiu esta noite. Não sabe muito bem o nome do Hotel onde está, talvez porque não seja suficientemente importante. Escolhe o modo de vibrador no telemóvel e coloca-o no bolso. Não pode deixar que ele toque enquanto fala com um paciente no consultório para onde irá dentro de segundos, no entanto espera ansiosamente que a namorada lhe telefone e lhe diga que já passou tudo, que ele já pode ir dormir a casa. Já não se lembra porque é que estão zangados, mas receberá o esperado telefonema enquanto ouve uma mulher magra que chora. Não terá coragem para pedir um bocadinho para atender o telefone e desligá-lo-á.
Com os olhos pousados em mais uma cerveja, Maria não percebe porque é que o namorado lhe desligou o telefone na cara. É de manhã e sente-se a morrer. Desliga o telemóvel e enterra-o no fundo duma carteira desarrumada. Rui sai da casa de banho com ar triste. Ela sorri-lhe e ele responde da mesma forma. São sorrisos carentes.

1 Comentários:

Às segunda-feira, outubro 31, 2005 , Anonymous Anónimo disse...

No fundo, todos procuramos o mesmo... "o amor".

Quando o temos em nossas vidas por vezes não cuidamos bem dele (e o amor quer ser bem tratado).

Quando se ausenta, andamos desesperados à procura dele.

Porquê que o homem teima em complicar o que há de mais simples nesta vida... amar.

 

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